Encarnação
A humanidade marcada pela
opressão, pela dor, pela utopia e pela esperança se fortalece pela encarnação
de Jesus e encontra a sua libertação. A encarnação aprofunda seu sentido pela
realidade da ressurreição. Por isso este tema da encarnação sempre nos remete à
salvação. Hoje é tão desolador celebrar o Natal de Jesus, vendo-o ofuscado pelo
mercado e seu ícone, o papai Noel. Mas por outro lado, para nós cristãos a
esperança nos permite vislumbrar um novo tempo, onde se realiza a ação
salvífica de Deus. Enfim, se a lei do mercado nos aprisiona ao consumismo,
Jesus nos liberta e confere sentido à nossa vida. É preciso irmos sempre em
busca da mística do Amor Encarnado e partilhar esta experiência, para que
outros também se sintam contagiados por ela.
Diante da experiência cristã
vivida pelas primeiras comunidades acerca dos ensinamentos e da vida de Jesus e
do novo sentido que Ele trouxe para elas, Ele foi sendo intitulado: Senhor,
Salvador, Filho de Deus, Messias, Libertador. Estes títulos atribuídos a Ele
explicitam a fé e a esperança no Deus próximo, compassivo que veio visitar o
seu povo. Atributos que reconhecem em Jesus
o agir libertador divino em favor de todos - pobres, doentes, surdos, cegos,
paralíticos, pecadores - e que anunciam que o Reino já está em nosso meio, e
este Reino é um Reino onde impera a liberdade e se realiza a esperança.
Vale ressaltar que Reino de
Deus no Evangelho e para Jesus
significava para os
ouvintes de Jesus a realização de uma esperança, no final do mundo, de
superação de todas as alienações humanas, da destruição de todo o mal seja
físico, seja moral, do pecado, do ódio, da divisão, da dor e da morte. Reino de
Deus seria a manifestação da soberania e senhoria de Deus sobre esse mundo
sinistro, dominado por forças satânicas em luta contra as forças do bem, o
termo para dizer: Deus é o sentido último deste mundo; Ele intervirá em breve e
sanará em seus fundamentos toda a criação, instaurando o novo céu e a nova
terra (BOFF, 1983, p. 65).
No Antigo Testamento, o povo
hebreu recebe a visita de Deus, que ouve o seu clamor e lhe concede a liberdade
através da liderança de Moisés. "... aos
olhos de Javé esta liberdade do povo de sua aliança era, em vista das tarefas
futuras, mais importante do que a antiga segurança econômica do Egito".
(BAUER, 1978, p. 634). Este povo que sai
do Egito, permanece um tempo no deserto passando sede e fome, por fim ao longo
da caminhada conquista um pedaço de terra. Porém, Israel vive muitas crises e muitos
conflitos internos e externos, e em várias situações fica sob o jugo de reis e
outras nações, ele ainda não se sente plenamente livre, portanto anseia pela
libertação definitiva. A esperança pela vinda do Messias é intensa e
impulsionadora de vida para ele, pois significa a libertação plena, é a
concretização do Reino, entendido como realização política.
No Novo Testamento, a visita
divina acontece de forma mais intensa e pessoal, porém "disfarçada" em uma
criança frágil, sujeita às vulnerabilidades e estruturas dos sistemas sociais,
culturais e religiosos de seu povo. Esta criança cresce, se torna um rabino,
ensina com autoridade e de maneira libertadora reinterpretando as leis judaicas.
Porém, só ao longo da convivência, e sobretudo, após sua ressurreição é que os seus
apóstolos e as comunidades primitivas o entendem como Filho de Deus, o Verbo
encarnado, como o Deus que fez história conosco, que viveu a nossa vida e os
nossos sofrimentos e angústias, e que nos libertou definitivamente de nossa
opressão mais profunda: o pecado, a falta de liberdade interior para nos
relacionarmos pessoalmente e de forma livre com Deus.
O próprio Jesus viveu a
experiência de está aprisionado exteriormente, mas interiormente estava completamente
livre, consciente de seus atos e de sua missão. Ele "se apresenta como servidor e livre, com autoridade, mas sem
autoritarismo; seu modo de argumentar é exigente, mas não impositivo. Critica
os poderes existentes, civis e religiosos, e ensina com suas palavras e obras
que autoridade é um serviço na liberdade" (BOMBONATTO, 2002, p. 240). Em
sua liberdade acolhe homens e mulheres, pecadores, pobres, excluídos, cura em
dia de sábado, toca os impuros. Ele é totalmente livre da lei isenta de amor e
bondade e por isso age com compaixão e misericórdia. Chega ao ponto culminante
de entregar a sua vida em amor e liberdade, uma "liberdade para escravizar-se a fazer o bem" (BOMBONATTO, 2002, p.
241.
"Liberdade
no sentido teológico é um dos muitos conceitos nos quais se traduz e se
ilustra, no NT, o efeito da ação salvífica de Deus em relação ao homem por meio
de Jesus Cristo. A liberdade do fiel, a sua condição de liberado, é o estado de
posse atual da salvação, tomado sob um determinado ponto de vista. Ser livre é
uma afirmação soteriológica. Como o homem, antes de Cristo, era escravo, assim
é escravo agora o homem sem o Cristo. Tal acepção da idéia de liberdade vale
para todos os escritos neo-testamentários, em que se trata da liberdade no
sentido teológico." (FRIES, 1970, p. 158)
A encarnação é um ato de
extrema liberdade de Deus que aconteceu pelo seu amor à criação toda, para
conceder-lhe a salvação. Não apenas nós, humanos, mas toda a criação é salva
pela encarnação. O Verbo Encarnado "assumindo a carne humana, ele se concretiza
assumindo as limitações próprias do ser humano: a cultura, o tempo, o lugar e o
desenvolvimento histórico da humanidade. Nestas limitações, ele manifesta a
profundidade de seu ser: ser-para-o-Pai e ser-para-os irmãos." (RIBEIRO,
1998, p.115).
Que
este Filho de Deus se faça homem e seja homem significa que ele próprio leva
uma vida verdadeiramente humana em tudo, exceto no pecado, semelhante à nossa:
uma vida por isso de ações verdadeiramente humanas, de liberdade
verdadeiramente humana, de consciência verdadeiramente humana
Pela encarnação, Jesus se
torna plenamente humano, vive em tudo a nossa condição, menos o pecado, mas
permanece plenamente Deus. Esta é a nossa fé na encarnação: acreditar no Verbo
divino encarnado, em Jesus Cristo: Homem-Deus. E esta encarnação "se realiza plena e inteiramente só na
realização total escatológica de toda a história da humanidade, quando Deus `será
tudo em todas as coisas´..." (FRIES, 1970, p.24).
A nossa busca pela liberdade,
que é busca contínua, deve ser iluminada pela liberdade da encarnação. Um Deus
livre que se encarna, se prende à estrutura humana fragilizada, mas que vive
intensa liberdade e nos conduz à liberdade porque espera ter a nós e toda a
criação em plena comunhão consigo. "A
verdadeira liberdade é uma conseqüência da filiação divina, que só Jesus, como
Filho, pode comunicar e que se alcança só na fé em Jesus, o enviado e o
revelador do Pai" (FRIES, 1970, p. 161).
Seguir a Jesus Cristo, fraco
e sofredor, presente no centro da realidade, encarnado e ressuscitado,
significa aderir ao seu projeto libertador-salvador. Jesus nos "capacita para a liberdade do amor, que
supera a lei porque ele se identifica com a verdade de Deus e está aberto para
o próximo. A autoridade de Jesus é a sua obediência: liberdade de Filho" (EICHER
, 1993, p. 467) que o permite doar a vida.
Os discípulos de Jesus
lançam-se para a missão a partir da experiência com o ressuscitado, é a
identificação com o futuro de Jesus. "A
partir desta perspectiva, a `reserva escatógica´ volta-se para tudo
presentemente alcançado e a ser conquistado" (EICHER, 1993, p. 242). Na Bíblia, "a esperança implica três momentos: a expectação do futuro, a confiança
e a paciência" (FRIES, 1970, p. 84). Para Paulo, "a esperança pressupõe o abandono de toda confiança na carne" (FRIES,
1970, p. 85). Para os cristãos, é uma
tensão na relação entre o "já" e o "ainda não". Sabemos que possuímos o Reino
pela ação libertadora de Jesus, mas ainda não o alcançamos definitivamente. "À medida que a pessoa, que tem a esperança,
apóia-se no `futuro de Jesus Cristo´, identifica-se ela com este e dele se
diferencia enquanto aquele que ainda não apareceu [...] mediante aceitação da
vocação como `esvaziamento neste mundo´" (EICHER, 1993, p. 242). Esta é a forte experiência que fazemos
em nosso cotidiano: a partir de Cristo buscar o Reino definitivo. Nossa
esperança tem seu fundamento no amor de Deus e nasce de nossa fé, ela não conta
com as possibilidades humanas, mas se fundamenta na confiança em Deus que
realizou sua promessa em Jesus Cristo.
Enfim, Jesus é uma pessoa
totalmente livre, por isso capaz de conduzir à libertação aquele que possui
esperança. É também alguém repleto de esperança, por isso anuncia o Reino
animando e acalentando os corações. Entrar na dinâmica de Jesus é sentir-se
livre e imbuído de esperança. É deixar-se conduzir constantemente pelo caminho
da libertação e ser movido pela força da esperança.
Referências
Bibliográficas:
BAUER,
Johannes B. Dicionário de Teologia Bíblica. Vol II. 2ed. SP, Edições
Loyola, 1978.
BOFF,
Leonardo. Ensaio de Cristologia Crítica para o nosso Tempo. 9ed, Petropólis,
Vozes, 1983.
BOMBONATTO,
Vera Ivanise. Seguimento de Jesus. Uma abordagem segundo a cristologia de Jon
Sombrino. SP, Paulinas, 2002.
EICHER,
Peter. Dicionário de Conceitos Fundamentais de Teologia. Tradução João
Rezende Costa. São Paulo, Paulus, 1993.
FRIES,
Heinrich. Dicionário de Teologia. Conceitos Fundamentais da Teologia
Atual. Vol II e III. SP, Edições Loyola, 1970.
RIBEIRO,
Hélcion. A Condição Humana e a Solidariedade Cristã. Petropólis, Editora
Vozes, 1998.
Ir. Ediana de Souza Soares